A fantástica fábrica de explosivos

Prepare-se para mergulhar na maior oficina de bombas do mundo – e na cabeça de um pessoal louco por guerra.

Por Peter Hossli Fotos Robert Huber

lookat_00000323_preview.jpgEu acho que bombas salvam mais seres humanos do que matam”, diz Carol, enfermeira aposentada que depois dos atentados de 11 de setembro virou encaixotadora de bombas na Fábrica de Armas e Munições McAlester, em Oklahoma, EUA. Cerca de mil pessoas, junto com ela, trabalham neste gigantesco complexo de 3 mil prédios espalhados por uma área com três vezes o tamanho de Manhattan. Eles sentem-se orgulhosos por servirem o país deles, mas o dinheiro que ganham também não é mau. Bem-vindo, leitor, a uma viagem pelo coração do patriotismo bélico americano. Só tome cuidado onde pisa.

É em McAlester que o exército americano fabrica, desde 1943, quase todas as suas bombas – com exceção das nucleares, Daqui saíram artefatos para matar vietnamitas e expulsar Saddam Hussein do Golfo Pérsico. No final dos anos 60, quando produzia com força total, McAlester enviava para o sudeste asiático cerca de 6 mil bombas por dia. Depois as guerras ficaram menos frequentes e os números caíram para 6 mil bombas ao ano. Em 1998, eles chegaram a demitir funcionários: o mundo tinha ficado muito pacífico.

Mas desde 2001 os EUA estão novamente em guerra e os empregados da maior fábrica de explosivos do mundo fazem turnos dobrados na sexta-feira e no sábado. A força aérea americana já despejou 21 mil bombas sobre o Afeganistão e 19 mil bombas no Iraque, por isso os estoques de Oklahoma precisam estar sempre cheios. A fábrica já mandou mais de 41,7 mil toneladas de munição de diversos tipos para as operações ainda em curso no Oriente Médio. Isso equivaleria ao poder destrutivo de duas bombas atômicas.

VOCÊ NÃO VAI FALAR

Segredo é a palavra de ordem aqui. É questão de segurança nacional. Quase ninguém gosta de dar informações. Nenhum presidente americano ou Secretário de Defesa jamais visitou o local. O anonimato de McAlester tem sido mantido há mais de 60 anos, exceto por uma placa na estrada H-69 onde se lê “Fábrica de Munições do Exército”. Um empregado murmura: “Vocês, jornalistas, dizem aos terroristas ‘ei, estamos aqui, venham nos atacar’. Não adianta, eu não vou dizer nada para vocês”.

Construída após o ataque surpresa japonês a Pearl Harbor em 1941 – o local foi escolhido por estar a uma distância segura dos canhões de qualquer navio inimigo – a fábrica teve seus mais de 2.800 prédios erguidos em 18 meses. Hoje, 2.200 deles servem de estoque, fazendo essa ser a principal serventia de

McAlester. É aquilo que eles chamam de Tier-One- Storage-Depot, um depósito de bombas de primeira importância. Numa emergência, eles devem ser capazes de enviar 400 contêineres por dia durante pelo menos um mês para as tropas.

O extenso arsenal da fábrica vai desde granadas de tanque de 20mm a bombas de penetração de 2,5 toneladas – o tipo usado para destruir cavernas no Afeganistão. O responsável pelo departamento de Relações Públicas não pode confirmar nem negar se esse arsenal inclui bombas atômicas, mas a localização central da fábrica, bem como o tamanho dos depósitos, faz supor que sim.
Segurança é algo que precisa ser levado a sério aqui. Trezentas barras de aço de 20 metros cercam os prédios de produção, enviando a descarga elétrica de um possível raio para o solo.

Se um tornado ou uma tempestade passarem por lá, toda a produção é imediatamente interrompida e os empregados correm para uma espécie de bunker-para-tempo-ruim.

SÓ UM EMPREGO

Na prática, os procedimentos de emergência são uma piada. Se algo cataclísmico realmente acontecer, não haverá tempo para escapar. Esta conclusão surge quando passo em frente a um pequeno memorial, idilicamente colocado na superfície de um lago artificial. Uma lembrança dos perigos de se trabalhar numa fábrica de bombas. Nela, se lê o nome das 25 pessoas que perderam a vida até hoje trabalhando em McAlester. O pior acidente aconteceu em 1944, quando 12 morreram numa explosão. Outro, mais recente, terminou com um empregado esmagado por uma bomba que caiu em cima dele, em 2002.

Pouco depois das 6:30 da manhã, os trabalhadores começam a chegar. No Posto 14, alguns quilômetros a oeste do portão principal, os fumantes devem de deixar seus isqueiros e fósforos num balde de metal – é que depois deste posto, ficam as oficinas de produção de explosivos. Os funcionários usam sapatos com alças de chumbo, para aterrar quaisquer cargas elétricas, além de óculos de proteção e bonés protetores para assegurar que nenhum cabelo eletricamente carregado vá disparar um explosivo com estática.

lookat_00000318_preview.jpgJames trabalha há três meses em McAlester. Nesta manhã, ele foi mandado para a área onde as cápsulas de aço das bombas são enfileiradas para serem montadas. Uma empilhadeira levanta um par de explosivos que chega num carrinho de carga, depois os deixa num assoalho de madeira em frente a James, que engraxa os pequenos tubos dentro da bomba por onde passam os fios de ignição. Ele parece feliz com seu emprego.

“Todo mundo quer trabalhar nessa área”, conta orgulhoso. O pagamento, de fato, é particularmente bom: aqui os novatos ganham US$ 11,22 por hora, e os mais experientes embolsam até US$ 25 por hora – três vezes mais que o salário médio em McAlester. Além disso, eles também têm grandes bônus no final do ano. Mas é um emprego no qual você precisa ter mãos firmes. As bombas americanas são basicamente feitas à mão. Com exceção
dos momentos em que é preciso erguê-las, são os trabalhadores que lidam com todos os passos do manuseio.

Usando as duas mãos, James encaixa uma bomba num gancho de metal, onde ela fica pendurada como um salame gigante pendendo de um teto cinza de concreto. Uma esteira rolante move a bomba até depois de uma curva, onde Debbie pesa o projétil ainda vazio. Uma balança de precisão mostra o resultado: 521,18 quilos. O peso da bomba vazia determina a quantidade de TNT ou PBX (Polymer Bonded Explosive) que vai ser despejado lá dentro. Depois, o objeto segue para Steve, que borrifa a parte de dentro do projétil com piche.

lookat_00000324_preview.jpg“Esse é o pior trabalho aqui”, diz ele. Steve trabalha na fábrica há três anos. Apesar de reclamar do atual cargo, ele parece motivado. “O que aconteceu naquele 11 de setembro mudou tudo. Agora a gente produz bombas pela liberdade. Eu sei por qual razão estou suando aqui”, diz, usando um argumento que se ouve muito em McAlester.

Há algumas semanas que ele trabalha exclusivamente com bombas tipo MK- 84, que têm aproximadamente uma tonelada. Elas são o arroz com feijão do arsenal – servem para qualquer propósito. A força aérea, a marinha, os Marines: todos usam – nenhuma outra bomba é lançada com tanta frequência pelos americanos. Na Guerra do Golfo, em 1991, eles usaram 12 mil dessas. Ela funciona bem se jogada em queda livre, mas, equipada com asas e um aparato para ser teleguiada, seu poder fica ainda maior. Pilotos de F-18, B-52 e B-1 carregam bombas assim. A cápsula de aço pesa 680 quilos, mas ela leva somente 226 quilos de explosivos: sua grande capacidade de matar, na verdade, vem dos muitos pedaços afiados de ferro que se desprendem na hora da explosão.

Às 9:00 da manhã, todo mundo faz uma pausa para descansar. Os fumantes se apertam numa sala à prova de incêndio, os não fumantes vão tomar café. Questões sobre a guerra no Iraque surgem, primeiro de forma tímida, depois mais animada.

“Sou a favor do conflito, assim o mundo vai saber onde fica McAlester”, diz um. (Bom, essa ideia provavelmente não melhoraria muito a imagem da cidade – McAlester é notória por executar mais prisioneiros que qualquer outro lugar da América, incluindo o Texas). “Nós não somos loucos por guerra, mas o 11 de setembro nos despertou”, explica James. “Nós deveríamos ter feito muito mais

depois dos ataques contra nossas embaixadas do Quênia e da Tanzânia”. Ele se orgulha da ajuda que as bombas estão dando no Iraque. “Ninguém gosta de matar”, diz. “Mas aqueles desgraçados estão tendo o que merecem”. Toca o sinal, termina o intervalo.

NO ESTOQUE

lookat_00000330_preview.jpgBombas não têm data de validade e muito raramente estragam. A maioria das que são lançadas é relativamente velha. Uma vez prontas, elas primeiro ficam estocadas em enormes iglus cobertos de terra, onde são inspecionadas a cada três a sete anos. Alguns desses bunkers são cobertos com lonas, para que a sujeira não acumule ao longo do tempo. Um ventilador mantém o ar circulando. Cada estoque é aterrado eletricamente e guarda cerca de 250 bombas de uma tonelada cada. Uma parede de concreto em frente à porta de aço serve para que, caso uma explosão aconteça, ela se propague verticalmente – e não para os lados. Para evitar uma reação em cadeia, os iglus são separados por 250 metros de terreno gramado.

Aqui e ali, veados ou porcos selvagens passam correndo, linces perseguem coelhos. A maior fábrica de bombas do mundo às vezes parece uma reserva natural. Nos fins de semana, até 300 caçadores aparecem atrás de veados com arcos e flechas (presumivelmente, armas são totalmente proibidas). Enquanto estamos ali, sete caçadores atiram flechas contra o coração de um veado pintado num cartaz. Amanhã, eles caçarão de verdade.

Alguns metros adiante dos arqueiros está um comboio de oito caminhões sem identificação. Firmas privadas transportam as bombas de McAlester até o “consumidor final” – é assim que eles se referem aos clientes –, para outros depósitos ou para o Golfo do México. Os motoristas recebem bônus polpudos. Existem checagens no meio do caminho para garantir que elas vão chegar ao destino, afirma um inspetor, que declara estar carregando, no momento, um número “acima da média” de caminhões.

BOMBAS VERDES

Os usuais protestos contra a surdez causada pela detonação de bombas descartadas foram interrompidos depois que McAlester virou uma fábrica ambientalmente correta. Hoje, as bombas são 100% recicláveis. Por exemplo, ali existe um monte com 10 mil carcaças vazias de bombas da época do Vietnã, que se tornaram obsoletas depois que as armas que as disparavam foram aposentadas. Até pouco tempo atrás, todos os dias, na hora do almoço, essas munições eram explodidas. Agora elas são aquecidas com vapor, seu conteúdo é derretido, retirado, resfriado e usado de novo; e as carcaças de metal são vendidas a um ótimo preço. Fabricantes de carro como a Toyota e a Volvo admitiriam, com alguma relutância, que usam metal de explosivos reciclados. Em pouco tempo, McAlester vai instaurar um equipamento que congela as bombas para destruí-las sem que precisem explodi-las.

A reciclagem aumentou os lucros. Hoje a receita bruta da fábrica fica entre US$ 100 e US$120 milhões. O diretor de vendas Brian Lott estima que o valor do patrimônio, no mercado de ações, seja de US$ 7 bilhões. As bombas são vendidas não só para os americanos, mas também para o Canadá, o Reino Unido e a República Checa. Recentemente a indústria comprou uma máquina de desinfecção, para eliminar dos assoalhos de madeira, onde as bombas são exportadas, parasitas controlados pela União Europeia.

IMPLICAÇÕES LETAIS

lookat_00000334_preview.jpgDe volta à linha de produção. Uma empilhadeira pega duas bombas recém-seladas e as coloca no contador, onde três trabalhadores parafusam as alças de latão usadas para serem fixadas no avião. Todo mundo está com protetores de ouvido. Numa sala selada, iluminada com luz violeta, um spray cinza para proteger contra ferrugem é aplicado. Dali, as bombas seguem para Roonie, o pintor que dá a cada explosivo o inconfundível acabamento verde-oliva. No fim ele se ajoelha, pinta a ponta arredondada de amarelo e manda aquele objeto de uma tonelada para sua esposa Pam, que seca a bomba com um exaustor.

Ronnie e Pam se apaixonaram nos corredores barulhentos entre o departamento de pintura em spray e os exaustores. Seus dois filhos passam o dia na creche da fábrica, junto com outras 40 crianças cujos pais constroem bombas. “De noite, a gente tem como regra falar de outras coisas”, ela conta. Apesar de mais falante que Ronnie, sua esposa odeia quando estranhos querem se meter em certos assuntos. “A guerra? Como não posso ir para o exército, trabalho aqui”, diz. “Quero defender meu país”. Pam é obviamente favorável à guerra do Iraque, mas não só porque terá mais trabalho. “No 11/9, eles nos emboscaram”. Seu lema? “Olho por olho”.

Carros de carga pegam as bombas recém-pintadas e levam para a “cozinha”, onde o TNT e o PBX são preparados. Aqui, os trabalhadores precisam usar máscaras antigás. A cada hora eles fazem intervalos e chupam pirulitos, para tirar o gosto ruim da boca. O material é despejado dentro da cápsula. Ainda sem tampa, as bombas seguem para a finalização, depois da cozinha. Lá, homens enchem cada uma com um composto acinzentado de PBX-pap e as entregam para Emma, Sonja, Carol e Joe.

Carol gosta de dar a cada bomba um toque pessoal, polindo cuidadosamente os explosivos. “Quando era enfermeira, salvava vidas. Agora faço bombas. Isso pode parecer um paradoxo, mas no fim eu acredito que essas bombas salvam mais seres humanos do que matam”, ela explica.

A maioria aqui não reflete sobre o fato de que essas bombas, em algum lugar, irão matar pessoas. “Isso é um emprego como qualquer outro, só que mais bem pago”, diz alguém. “Se a gente pensar demais nas consequências, acaba pirando”.